As feridas de origem

"Você é os brinquedos que brincou, as gírias que usava, você é os nervos a flor da pele no vestibular, os segredos que guardou, você é sua praia preferida, Garopaba, Maresias, Ipanema, você é o renascido depois do acidente que escapou, aquele amor atordoado que viveu, a conversa séria que teve um dia com seu pai, você é o que você lembra.
Você é a saudade que sente da sua mãe, o sonho desfeito quase no altar, a infância que você recorda, a dor de não ter dado certo, de não ter falado na hora, você é aquilo que foi amputado no passado, a emoção de um trecho de livro, a cena de rua que lhe arrancou lágrimas, você é o que você chora.
Você é o abraço inesperado, a força dada para o amigo que precisa, você é o pelo do braço que eriça, a sensibilidade que grita, o carinho que permuta, você é as palavras ditas para ajudar, os gritos destrancados da garganta, os pedaços que junta, você é o orgasmo, a gargalhada, o beijo, você é o que você desnuda.
Você é a raiva de não ter alcançado, a impotência de não conseguir mudar, você é o desprezo pelo o que os outros mentem, o desapontamento com o governo, o ódio que tudo isso dá, você é aquele que rema, que cansado não desiste, você é a indignação com o lixo jogado do carro, a ardência da revolta, você é o que você queima.
Você é aquilo que reinvidica, o que consegue gerar através da sua verdade e da sua luta, você é os direitos que tem, os deveres que se obriga, você é a estrada por onde corre atrás, serpenteia, atalha, busca, você é o que você pleiteia.
Você não é só o que come e o que veste. Você é o que você requer, recruta, rabisca, traga, goza e lê. Você é o que ninguém vê." (Martha Medeiros)


AS FERIDAS DE ORIGEM
Martha Medeiros

Nossa vida, aparentemente, resume-se a fazer contas para ver se o dinheiro é suficiente para as despesas, a comprar verduras para uma salada e a discutir o destino da seleção brasileira, entre outros acontecimentos de rotina, puramente cerebrais. No entanto, existe o mundo de fora e o mundo de dentro. Dentro, a rotina é outra: medo, frustração, impaciência, entusiasmo, saudade. Ficamos tão atordoados com essa quantidade de sensações contraditórias que necessitamos de um verbo: entender.

Queremos entender nossa mágoa como quem entende as razões que levaram o Felipão a convocar o Tinga. Queremos entender nossa tendência autodestrutiva como quem entende que 200 reais de saldo é insuficiente para pagar a prestação do carro. Queremos ter certeza de que amamos uma pessoa como quem tem certeza de que gosta de tomate seco. Perseguimos conclusões.

Nesta ânsia de querer racionalizar sobre tudo, buscamos algo no nosso passado que justifique nosso jeito de ser. Temos necessidade de relacionar tudo o que sentimos com nosso background original. "Sou fechado porque, quando era criança, um coleguinha traiu minha confiança e me humilhou em sala de aula". "Sou reprimida sexualmente porque minha mãe trazia diversos namorados pra casa". "Sou galinha porque preciso testar meu poder de sedução, já que na adolescência eu não acreditava em mim mesmo". "Tenho mania de limpeza porque quando pequena eu achava que tudo era pecado".

Buscamos uma ferida de antigamente para justificar as dores atuais. É como se o ser humano adulto fosse uma seqüela ambulante. Admito que também faço parte desta turma que busca compreensão para tudo, mas estou aprendendo a ser mais condescendente comigo mesma. É um alívio desresponsabilizar-se sobre o que nos aflige e simplesmente aceitar que as coisas são como são, que nós somos o que conseguimos ser, com nossas grandezas e fraquezas, nossos erros e acertos, nossa sensatez e nossas neuroses. Conhecer a si mesmo não significa ter todas as respostas. Significa conviver pacificamente com nosso lado tortuoso sem permitir que ele seja torturante.

Todos têm feridas mal cicatrizadas. Feridas que deixam marcas na alma e algumas até marcas no corpo, visíveis a olho nu. Como chegaríamos até aqui sem elas? Não somos a virgem imaculada. A vida nos atinge, penetra, encharca, chamusca: tudo nos traz conseqüência. E não há o que lamentar. Vida é dor, superação e alegria. Uma montanha-russa ininterrupta, uma vertigem sem fim.
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