O direito a fantasia

"Nos últimos 37 anos, o número de súplicas estapafúrdias segue aumentando e quase ninguém mais se lembra de agradecer o mistério da existência, o poder transformador dos afetos, a liberdade de escolha, o contato com o que ainda resta de natureza, o encanto dos encontros, a poesia que há numa vida serena, a alma nossa de cada dia, essas coisas que parecem tão obsoletas e, pelo visto, são. Oh, Lord, desce daí, faz alguma coisa, que aqui embaixo já trocaram o abstrato pelo concreto e não demora estarão pedindo a parte deles em dinheiro." (Martha Medeiros)



O DIREITO À FANTASIA
Martha Medeiros
Jornal O Globo - 06/02/2005

Estive conversando com uma psicóloga que me disse que a maioria de suas pacientes sente uma culpa enorme em fantasiar - a não ser que seja com o George Clooney ou algum outro objeto de desejo localizado a milhas de distância e, portanto, inalcançável. Já se tiverem uma alucinaçãozinha com o vizinho do andar de cima, correm pra igreja e não saem de lá sem uma sacola de penitências.
Olho para o outro lado, onde está sentado um psiquiatra, e pergunto: isso é verdade? Ele confirma. Diz que a nossa cultura reprime até o pensamento. A imaginação é uma forma de pecado também.

Não foram poucas as vezes em que me senti uma ET, mas ainda reluto em me mudar para Varginha e esperar que um disco voador me resgate. Em vez disso, teimo e fico aqui mesmo, tentando entender o planeta em que vivo.

A cada dia me convenço que a infelicidade, a amargura, o tédio e as queixas diárias da maioria das pessoas são tesouros que elas preservam com o maior zelo. Sofrer lhes justifica a existência. Sentem-se mais vivas com sua penúria emocional do que usufruindo dessa tal de leveza que alguns alardeiam. Que leveza, o quê. Mulher séria é mulher contraída e obediente às leis que ela não inventou, mas respeita - e teme. Ela não é louca de arriscar perder o controle sobre si própria.

Reprimir nossas fantasias é uma amputação. A gente é o que a gente vive e também o que a gente delira, sonha, projeta, inventa, reconstrói, ousa - verbos raramente praticados no nosso santificado dia-a-dia. Fantasiar não resume-se a imaginar uma cena de sexo no elevador. É imaginar-se apartado do cotidiano conhecido, vivendo emoções mais arrebatadas, sendo uma pessoa totalmente diferente do que se é. Por que só é tolerado no carnaval?

Lantejoula, paetê, purpurina, maquiagem, pouca roupa, cores fortes: a gente tem tudo isso em estoque, nem precisa de produção. Basta fechar os olhos e enxergar para dentro. Há milhares de possibilidades de sensações a serem desfrutadas sem prejuízo algum para os outros ou para nós mesmos. É o mínimo que a gente merece depois de tantos anos de, digamos, trabalhos forçados.

Passamos a vida inteira cumprindo o que esperam de nós, respeitando os sinais de trânsito, pagando os impostos em dia, decorando senhas, sendo gentis, solidários, pacientes, chegando pontualmente ao serviço, sendo ótimos pais, ótimos filhos, fazendo a casa funcionar, economizando centavos, cuidando da higiene, ouvindo desaforos e grosserias de quem não nos compreende, e sem esboçar reação alguma, tudo para contribuir com a paz no mundo. Levantamos todo santo dia com disposição: da cama pro banho, do banho pro trabalho, dia após dia sem exaurir-se, porque faz parte da vida seguir as regras e ser um sujeito decente, e não há nada de errado com isso - mas não há só isso.

E o nosso lado marylin monroe, pitbull, al capone, serial killer, james dean, sharon stone, viking, cinderela, michael moore? Tudo o que nos fascina, horroriza e diverte: por que não experimentar sem sair do lugar?

Fantasiar é inofensivo, saudável e de graça. Ajuda a perder peso, e não a perder o controle. Muito pelo contrário: quem tem medo do próprio pensamento é que já está comprometido.
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