Peças sem reposição

"Eu existo além daquilo que sou. Como todo mundo. Gosto de estar só e às vezes detesto me sentir sozinha. Amo as pessoas de uma maneira geral, gosto de ver rostos, imaginar as histórias que se escondem por detrás das rugas, olhos brilhando ou caras fechadas. Mas não gosto de estar no meio da multidão. Penso muito. Deus do céu, como penso! Devo ter uma maquininha no lugar do cérebro. Porém tenho um coração que se derrete à toa e o sofrimento dos outros me entra na pele. Na adolescência eu cheguei a me dizer que seria missionária. E devo ter seguido o caminho de Jonas, ter entrado no ventre da baleia e não pude fugir ao que o Senhor tinha reservado pra mim. E amo ao meu Deus por isso.
Portanto, junto de toda essa fortaleza que me faz ser quem sou, se algo sou, tem ainda aquela criança que ri do tudo e do nada, que gosta de fazer palhaçada, que gosta de atenção, chora por motivos bobos e outros mais sérios. Eu sou, em resumo, alguém que precisa de outras pessoas, apesar dessa aparência de mulher forte e decidida. Sou assim e me sinto assim muito pequena muitas vezes. Amigos sao essenciais para mim, mesmo se muitas vezes eu me isolo. Essa é minha necessidade e amigos de verdade compreendem. Sou assim..."
(perfil da escritora Leticia Thompson no orkut)


PEÇAS SEM REPOSIÇÃO
Martha Medeiros

Eu não entendo nada de pintura, mas reverencio quem tem o dom, e por isso corri para a exposição Paris 1900 assim que pude. Não é toda hora que se tem a oportunidade de ficar frente a frente com um Toulouse Lautrec, um Renoir, um Cezanne ou com uma escultura de Rodin, mesmo que não sejam suas obras mais importantes. Está tudo lá no Margs, ao alcance dos olhos. Mas não das mãos, pois trata-se de um museu, e exige-se modos: é proibido tocar, é proibido colocar o acervo em risco.

Pois estávamos eu e uma amiga apreciando um belo cálice esculpido por um dos artistas, muito bem protegido dentro de uma caixa de vidro, quando ela me contou que tinha um cálice em casa que ela também tratava como obra de arte. É um cálice que ela ganhou de presente do dono de um restaurante de Frankfurt, onde ela teve um jantar que mudou sua vida. Além de o cálice ser espetacular, tem um valor afetivo imenso, e ela o guarda quase que numa redoma, só falta etiquetar e direcionar um canhão de luz em cima. Outro dia ela se descuidou e viu seu sobrinho, um garotinho estabanado como qualquer outro, pegar o seu santo graal pra tomar água. Ela não enfartou por detalhe. Retirou o cálice da mãozinha dele e o substituiu por um bom copo de plástico colorido. O guri topou a substituição e ela voltou a respirar.

A troco de que todo esse papo? Pra lembrar que tem muita coisa na nossa vida que não tem reposição. Não falo apenas do Iberê que alguns sortudos têm na parede. Falo de pequenos cálices sagrados, que podem nem ser cálices. Na maioria das vezes são gente.

É exagero colocar numa redoma as pessoas que nos são caras, mas exceder-se no descuido é imperdoável. Amigos, principalmente os íntimos, esquecem com muita freqüência de serem gentis uns com os outros. Se a gente for perguntar por qual razão, "ora, porque somos amigos, não precisamos disso". Até que um dia colidem feio, se espatifam, e o carinho, que era para ter sido exercitado e não foi, vai fazer falta na hora de colar tudo de novo.

Pessoas não têm reposição. São obras de arte exclusivas, seguro nenhum compensa a perda. Às vezes, por causa de uma bobagem, uma lasquinha, a gente deixa de lado o que há de mais precioso no mundo: um relacionamento. Não nos damos o trabalho de restaurá-lo, seja por orgulho, presunção ou pela total falta de noção do que realmente é importante nessa vida.

Cálices belos e raros, quadros representativos de uma época, amigos, filhos e amores: únicos. Reproduções não valem nada.

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